MAR ADRI-TICO, Itália – Desde o momento em que viu o cargueiro enferrujado sair vagarosamente de uma nuvem de cerraþÒo e abruptamente mudar de rota no Estreito de Otranto, 40 quil¶metros a oeste da costa albanesa, o capitÒo Antonino Lo Presti ficou preocupado. «+ um velho petroleiro para transporte de gás, o tipo de navio que qualquer contrabandista pode comprar num estaleiro de sucata, pagando quase nada», diz ele, dando ordem para acelerar ao máximo os motores. «Quando captamos esse navio no radar, ele nem mesmo respondeu aos sinais.»
Aí é onde o Terceiro Mundo, devastado pela guerra, se encontra frente a frente com a Europa Ocidental, numa luta tensa entre a sociedade civil e o crime organizado que todas as noites mantém centenas de pessoas como reféns.
O navio Cavaglia, de alta velocidade, comandado por Lo Presti, que navega sob a bandeira da Guardia di Finanza – correspondente Ó Guarda Costeira dos Estados Unidos -, patrulha uma das mais perigosas rotas marítimas da Terra.
Uma conspiraz’o internacional de dimens»es sem precedentes, envolvendo m fias criminosas em meia dozia de naz»es – contrabandeando enormes quantidades de narc¢ticos, armas e seres humanos desesperados -, opera nessas guas.
Conspiraz’o do submundo – + medida que os dois navios se aproximam, numa noite sem lua do m^s de janeiro, o r dio do cargueiro de 220 p’s finalmente responde, concordando em parar. O nome do navio e do porto s¡rio de origem s’o apenas rabiscos apagados, quase ileg¡veis, na popa.
«Pode ser que carregue drogas», diz Lo Presti a um rep¢rter. «Podem ser armas. Podem ser pessoas.» Liderados por um dos oficiais, Girolamo Gambino, quatro dos homens de Lo Presti vestem coletes . prova de balas e empunham armas port teis, preparando-se para subir a bordo.
Voltam depois de uma hora, balanzando a cabeza. O cargueiro levava apenas um rebanho de cabras com destino ao porto de Koper, na Eslov^nia. N’o faz sentido algum como carga, mas o Cavaglia n’o pode fazer mais nada.
Dois dias depois, a pol¡cia informa que um enorme grupo de imigrantes clandestinos desembarcou na costa, perto de Veneza, procedente de um pequeno porto situado exatamente ao sul de Koper.
O Estreito de Otranto, de 78 quil»metros de extens’o, ‘ uma passagem mar¡tima entre a rica Uni’o Europ’ia e um Terceiro Mundo mergulhado na guerra civil – ‘ a oltima etapa de uma viagem ‘pica para grande nomero de emigrantes sem documentos.
Sua origens s’o um cat logo das crises mais sangrentas do planeta em 1999. Cruzando o estreito a bordo de navios cargueiros enferrujados, ou, mais freq_entemente, em lanchas a motor, a 90 quil»metros por hora – que t^m suas bases no porto alban^s de Vlore -, est’o refugiados de todos os conflitos que agora assolam a -frica, os B lc’s e o sul e o centro da -sia.
Numa onica tarde e noite de janeiro em que a equipe do Chronicle passou a bordo do Cavaglia, a Guardia di Finanza deteve 365 emigrantes clandestinos.
Eles haviam navegado desde Vlore, ap¢s viajar at’ dez semanas desde Sri Lanka, Afeganist’o, fronteira curda da Turquia e do Iraque, Kosovo, Arg’lia, Serra Leoa, Lib’ria e Nig’ria at’ a AlbYnia. Porta-vozes do governo estimam que de 800 a mil emigrantes desse tipo deixam Vlore diariamente, conseguindo enganar a vigilYncia ou afogando-se na viagem.
Uma vez na It lia, os emigrantes podem viajar para o norte sem empecilhos e desaparecer nesses guetos do Terceiro Mundo que engrossam cada vez mais em Paris, Berlim, Bruxelas e Roterd’. Num esforzo para integrar ainda mais suas economias, a It lia e a maioria das naz»es da Uni’o Europ’ia desmantelaram seus postos fronteirizos nos dois oltimos anos.
O que precede essas viagens clandestinas no Estreito de Otranto ‘ o que sugere a exist^ncia de uma conspiraz’o do submundo, ainda mais extensa e fat¡dica do que qualquer outra anterior nos anais do crime organizado. Em poucas palavras, desde o Mar do Sul da China at’ a Sic¡lia, grupos mafiosos reconheceram uma oportunidade de ouro nas fronteiras internas abertas da Europa.
Pagamento adiantado – Com extraordin ria sofisticaz’o e minucioso planejamento, eles uniram as forzas para contrabandear milhares de seres humanos atrav’s da fronteira adri tica da UE. Em dezenas de entrevistas, os emigrantes afirmaram ter pago integralmente seu transporte para a Europa Ocidental em sua p tria.
Em cada etapa da subseq_ente viagem – seja na remota fronteira entre o Iraque e a Turquia, seja num porto da Nig’ria, AlbYnia ou Paquist’o -, «nibus, carros e navios estavam esperando e nenhum outro pagamento foi exigido. «Dei US$ 6 mil a um homem em Cabul em meu nome e no de minha irm'», disse um viajante do Afeganist’o. «Quando cruzei a fronteira do Paquist’o, havia um mini»nibus pronto para levar-nos. Quando chegamos ao Ir’ e . Turquia, havia outros «nibus.»
Nem ele nem sua irm’ tinham passaportes ou documentos oficiais de identificaz’o. Apesar disso, cruzaram v rias das fronteiras mais fortemente vigiadas do mundo. «Depois da Turquia, havia um navio de carga para levar-nos . AlbYnia», disse ele. «Ningu’m, em parte alguma, disse uma palavra pedindo mais dinheiro.»
Em resumo, a parte que cabia a cada motorista ou a cada timoneiro j havia sido fixada de antem’o e distribu¡da por uma equipe internacional de pagadores, encarregados de cumprir esquemas espec¡ficos de pagamento que se estendiam atrav’s de dois continentes. O tamanho do pagamento adiantado ‘ baseado numa f¢rmula complicada que leva em conta o n¡vel de riscos pol¡ticos, bem como a distYncia.
Como os afeg’os, v rios cidad’os do Sri Lanka pagaram US$ 3 mil por pessoa. «+ramos os oltimos filhos vivos em nossas fam¡lias», disse um deles. «Todos deram alguma coisa, todos esperam que possamos retir -los de l tamb’m.» Um grupo de 24 curdos e 6 crist’os do Iraque que fizeram a viagem juntos pagou US$ 1,5 mil por pessoa. Uma fam¡lia de quatro pessoas de Kosovo pagou US$ 1 mil por adulto e US$ 500 por crianza.
Aos albaneses ‘ oferecido um pacote especial, se viajarem por conta pr¢pria at’ Vlore: tr^s viagens para a It lia por apenas US$ 1,2 mil por cabeza, «para o caso de sermos pegos nas duas primeiras vezes», explicou um deles.
Al’m dos albaneses, a maioria dos que s’o capturados no mar pela Guardia di Finanza, ou nas praias pelos carabinieri italianos, ‘ de refugiados que podem solicitar asilo pol¡tico, embora n’o haja nenhuma certeza de que eventualmente ser’o atendidos.
O governo italiano n’o repatria . forza os que chegam ilegalmente de pa¡ses assolados pela guerra, onde podem ser presos ou executados como supostos terroristas. Muitos imigrantes clandestinos de Kosovo, da regi’o curda do Iraque e da Turquia, e do norte de Sri Lanka – especialmente homens jovens entre 21 e 35 anos – s’o claramente militantes, identificados como tais pelas autoridades policiais em suas p trias e obrigados a fugir. «N’o h dovida de que sou um tigre», disse um refugiado, referindo-se ao grupo guerrilheiro ‘tnico tamil Tigres, que trava h 15 anos uma guerra contra o governo do Sri Lanka.
«Todos os tYmeis com a minha idade em nosso pa¡s s’o tigres», diz o rapaz. Os rec’m-chegados capturados encontram-se numa situaz’o complicada e desmoralizante ao ingressar na It lia. A primeira parada ‘ um monte de barracas de metal, cont^ineres de alum¡nio transformados em moradia tempor ria e instalados nos ancoradouros do Estreito de Otranto, o porto do Cavaglia.
Deportaz’o instantYnea – Logo que suas origens s’o estabelecidas, os que n’o s’o identificados como nativos da AlbYnia, Marrocos ou Tun¡sia – pa¡ses que assinaram «acordos de deportaz’o instantYnea» com a It lia – s’o levados de «nibus para a Casa Regina Pacis (Rainha da Paz), um campo de refugiados, uns 20 quil»metros ao norte de Otranto, na cidade de San Foca, onde s’o fotografados e deixam suas impress»es digitais.
Dentro de uma semana, a maioria ‘ liberada para ficar sob a guarda de parentes na Alemanha, no norte da It lia ou na Franza, de acordo com a legislaz’o sobre solicitantes de asilo. Outros s’o enviados a campos de perman^ncia tempor ria na Sic¡lia ou atravessam, durante a noite, as cercas de San Foca para tentar escapar rumo ao norte, da melhor forma poss¡vel. O cen rio em San Foca, no fim de janeiro, parecia uma nova Babel: nos telefones dos corredores, os refugiados internados falavam em dezenas de l¡nguas, chamando parentes. A instalaz’o foi constru¡da para abrigar 300 escoteiros em f’rias de ver’o.
No dia 24 de janeiro, o acampamento abrigava 600 imigrantes. As paredes dos lotados sal»es-dormit¢rio do edif¡cio est’o cobertas de rabiscos e pixaz»es, tamb’m em dezenas de l¡nguas, deixados pelos que chegaram primeiro: «Kosovo, eu te amo», «Eu fui para a Alemanha» ou «Al nos proteja». Num canto do sal’o, depois dos telefones, duas prostitutas liberianas estavam calmamente sentadas em beliches, esperando uma decis’o sobre seu pr¢ximo destino.
O tr fico clandestino tornou-se cada vez mais um moderno tr fico de escravos: mulheres jovens, principalmente da -frica Ocidental, da UcrYnia, da Rossia e da AlbYnia s’o obrigadas a cair na prostituiz’o e vendidas a intermedi rios que comandam as redes do sexo na Europa. As mulheres liberianas recusaram-se a falar, mas muitas outras em San Foca estavam ansiosas para contar suas hist¢rias.
«Sou professora prim ria, de um pa¡s onde n’o existem mais salas de aula nem livros», disse uma refugiada do Afeganist’o. «E tamb’m sou tajique», acrescentou, passando o dedo na garganta para sugerir que l se corta o pescozo das pessoas da etnia tajique. A minoria tajique do Afeganist’o, que resistiu . revoluz’o do movimento fundamentalista Taleban, foi submetida a campanhas de genoc¡dio pelo governo nos oltimos meses.
A organizaz’o cat¢lica beneficente Caritas, que administra o acampamento em nome das autoridades italianas e supervisiona as visitas de rep¢rteres, pede apenas que n’o se cite nenhum nome. «Esses s’o refugiados pol¡ticos», disse uma executiva da Caritas. «Suas fam¡lias poder’o correr perigo de vida se alguma pessoa errada ler os artigos escritos por voc^s.» Sua preocupaz’o reflete uma ampla mistura de alarme e simpatia entre os italianos, para os quais essa migraz’o em massa ‘ um epis¢dio recente de sua hist¢ria.
«Eles chegam com todos os problemas imagin veis – feridas de baioneta, membros quebrados, infecz»es do sistema respirat¢rio, desarranjo intestinal, traumas mentais agudos. + de cortar o coraz’o», disse a dra. Marina Greco, que preside uma cl¡nica no Regina Pacis, onde trabalham dois m’dicos.
«Olho para essas pessoas e n’o posso deixar de pensar: `quantos, de minha familia fizeram o mesmo tipo de viagem para a Am’rica?'», disse Gambino, oficial do Cavaglia, que ‘ siciliano. Mas esse sentimentalismo n’o se estende aos albaneses.
Hostilidade italiana – Ao contr rio dos refugiados que compartilham seus navios, os albaneses detidos s’o devolvidos para sua p tria em 24 horas. Um dos resultados disso ‘ que as balsas que viajam diariamente entre a It lia e a AlbYnia est’o quase vazias no sentido oeste – as viagens nessa direz’o s’o feitas em lanchas ou em navios cargueiros – e completamente lotadas no sentido leste.
Os devolvidos s’o uma enciclop’dia viva das raz»es por que a opini’o poblica italiana mudou, de uma simpatia de brazos abertos em relaz’o . AlbYnia, quando esse pa¡s encerrou violentamente meio s’culo de regime stalinista opressor, em 1992, para uma terr¡vel hostilidade.
Numa recente viagem desde o porto italiano de Brindisi para Vlore, a balsa Tirana, da Illyrian Lines, estava inteiramente lotada de jovens, que se entregaram a uma foria selvagem durante a viagem de uma noite inteira, saqueando as cabines e o conv’s, que ficou repleto de cadeiras e mesas quebradas.
Os ladr»es rapidamente identificaram os poucos estrangeiros a bordo – inclusive dois correspondentes do Chronicle, que foram repetidas vezes ameazados de espancamento e cujos t¡quetes de cabine e passagens de volta foram roubados antes da partida da balsa. «Eles t^m uma mentalidade distorcida depois de todos esses anos de isolamento», disse Antonio Probo, um oficial do Cavaglia, referindo-se aos anos em que a AlbYnia viveu sob o regime do falecido Enver Hoxha, ditador que fechou seu pa¡s . Uni’o Sovi’tica e . China de Mao e tamb’m ao Ocidente capitalista.
«Eles n’o t^m nenhum senso de relacionamento entre o trabalho leg¡timo e o dinheiro. Os piores dentre eles s’o bastardos perversos, capazes at’ de atirar ao mar um beb^ sem nenhum remorso, se ele o atrapalhar.» Essa acusaz’o ‘ repetida amplamente pelas autoridades policiais italianas e pelos membros de organizaz»es de ajuda.
«Todas as noites, nos oltimos meses, um beb^ ou uma menina foi empurrada e jogada ao mar», disse Alessandro Russo, assessor m’dico da organizaz’o beneficente cat¢lica Miseric¢rdia, que trata de imigrantes feridos na Ba¡a de Otranto. +s 23h30, enquanto Probo e Gambino observam o horizonte com seus bin¢culos, a voz do oficial do radar lanza de repente um grito pelos alto-falantes do Cavaglia: «Lancha, 41 graus e 22 minutos ao norte por 18 graus e 43 minutos a leste, singrando rumo oeste-sudoeste, a 45 n¢s.» O capit’o Lo Presti ajusta o rumo e acelera o navio para interceptar. A cazada ‘ um exerc¡cio nessas frustraz»es que fazem a vertiginosa crise da imigraz’o na Europa parecer insolovel para muitos observadores.
Equipado com sens¡veis instrumentos computadorizados de navegaz’o, o Cavaglia pode avistar a lancha uma hora depois. Mas, enquanto os contrabandistas fazem seu trabalho, «enquanto os imigrantes s’o desembarcados com seguranza na costa, n¢s n’o podemos fazer nada, a n’o ser rastrear sua localizaz’o», disse Lo Presti. «Caso contr rio, apenas chegando perto demais, podemos acidentalmente matar muitas pessoas. Essas embarcaz»es est’o perigosamente superlotadas e s’o inst veis», acrescenta.
M’os atadas – Essas preocupaz»es se justificam. No dia 6 de dezembro, dois navios com destino . Italia afundaram numa tempestade de inverno. Autoridades navais internacionais acreditam que eles levavam at’ 700 curdos, africanos ocidentais, argelinos, afeg’os, iraquianos e paquistaneses. Mais de 200 pessoas podem ter morrido afogadas.
«Um confronto no mar com as lanchas, lotadas de m’es e filhos, ‘ uma coisa que n’o pode ser feita sem se correr os mais graves riscos», disse o primeiro-ministro italiano, Massimo D’Alema.
Apesar disso, a frustraz’o s¢ aumenta quando a lancha desembarca seus passageiros, e provavelmente um carregamento de narc¢ticos, e volta ao mar.
Numa perigosa cazada . meia-noite, a cerca de 80 quil»metros por hora em alto-mar, o Cavaglia aproxima-se v rias vezes da lancha a motor, mas esta consegue manobrar e escapar e o Cavaglia perde a presa.
«Gostar¡amos de dar um tiro nos flancos da lancha, com certeza, e temos armamento para isso», disse Domenico Di Gianvittorio, veterano oficial da Guardia di Finanza.
«Mas sairemos daqui com as m’os amarradas. A pol¡tica ‘: `N’o atirar, a n’o ser que eles atirem primeiro.'» E os contrabandistas sabem disso muito bem. «Por isso, o resultado ‘ que n¢s corremos para a frente e para tr s, noite ap¢s noite, sem nenhum prop¢sito, enquanto o com’rcio de carne humana continua debaixo de nosso nariz.»